"Não me importa se um livro de poemas atingiu um milhão de pessoas, o que me importa é saber em que medida aquele livro de poemas me ajudou a ver o mundo"
[Entrevista concedida a Gerson Dudus]
Palavra Expressa é o projeto de poesia que ocupa as dependências da Biblioteca Pública Dr. Telio Barreto, no Centro Macaé de Cultura. Um encontro que busca aproximar o macaense da poesia brasileira e local. Tem homenageado vários poetas da cidade, alguns com mais de 90 anos de idade, com saraus de poesia, além de oferecer oficinas para ampliar o conhecimento da poesia contemporânea e aprimorar a técnica daqueles que gostam de fazer poesia e não apenas lê-la ou ouvi-la. Para comemorar seu primeiro ano, foi convidado o poeta Carlito Azevedo, para falar de poesia brasileira contemporânea e lançar o vigésimo número da mais importante revista de poesia no Brasil, hoje – a Inimigo Rumor.
Carlito Azevedo recebeu o Prêmio Jabuti após estrear na literatura com o livro de poesia Collapsus Linguae (1991). Sua obra foi reunida em Sublunar (2001), que inclui As banhistas (1993), Sob a noite física (1996) e Versos de circunstância (2001). Carlito foi recentemente incluído na lista dos vinte maiores poetas brasileiros vivos. Tem livros publicados em Portugal, Espanha e Argentina, além de participar de diversas antologias poéticas publicadas na França, nos Estados Unidos, na Itália, na Colômbia e no México. Coordena a coleção de poesia Ás de colete, das editoras Cosac & Naify e 7Letras. Desde 1997, trabalha como editor da revista de poesia Inimigo Rumor, revista que chega ao número 20 e foi lançada durante o evento desta terça feira(12), na própria Biblioteca. Mais de 60 pessoas assistiram à fala de Carlito e participaram do debate logo depois.
Gerson Dudus - Tem uma visão popular sobre poesia, que acredita ser ela a expressão dos sentimentos, em versos...a visão romantiquinha.Depois das vanguardas e do modernismo a gente sabe que não é tão simples. Existe alguma definição de poesia que seja operacional hoje, quando há trabalhos que reúnem artes plásticas, música, performance/teatro/dança e palavra e não se resumem ao livro, à pagina e ao verso? É possível ainda uma fina película conceitual que diga pra gente o que é poesia?
Carlito Azevedo - Se alguém acha que a poesia é algo que já foi inventado, cuja invenção já foi terminada, só lhe resta seguir "escrevendo" poesia como manda o figurino. Mas eu tendo achar bem mais interessante pensar a poesia como algo que ainda está sendo inventado, cuja gramática e definição só vale para ler o que passou e não para reger e dirigir o que virá. De modo que a única definição que posso utilizar para a poesia é aquela mais abrangente de todas, usada uma vez pelo russo Mikhail Bakhtine: há poesia toda vez que algo nos ensina a ver diferenças onde antes só se via mesmice, homogeneidade.
Gerson - Mas, Carlito, em cada época, os poetas se mobilizam por certas questões - estéticas filosóficas, éticas, políticas. Seu intercâmbio com poetas daqui e de outros países acaba dando uma visão geral de poesia contemporânea no mundo? Para você quais são as questões centrais com que o poeta tem que se confrontar hoje no Brasil?
Carlito - Não quero parecer alguém que dá receitas ou aponta caminhos, o que posso dizer é que a poesia que prefiro na atualidade é aquela que (trate do tema que tratar) me passa a dimensão do abismo que há em estar vivo. Há o abismo social, visível, tangível a cada esquina. E há o abismo existencial: somos regidos pelo acaso e pelo caos. Como disse o Mallarmé há mais de cem anos, não há ordem inventada pelo homem que possa abolir o acaso dessa imensa estrutura que é o universo. Sabe-se que a única prova de que amanhã, ao acordarmos, o universo ainda estará aí fora é o fato de que até hoje foi assim.
Tem gente que reage a esse estado de coisas buscando uma ilusão de segurança, e daí surge a arte mais acadêmica, que se quer eterna, clássica, perene... ilusões de perenidade num mundo em contínua transformação. E tem gente (e é a gente que eu prefiro) que reage a esse estado de coisas incorporando em sua produção artística o aleatório, o informal, a indeterminação, o experimental, como dimensões fundamentais. É como se para esse tipo de poeta, a poesia fosse uma sonda mental que ele atira ao desconhecido para ver se encontra um ponto fora de si a partir do qual re-descrever o mundo. Muito melhor isso que escrever obedecendo as regras do mercado.
Gerson - Falando em regras do mercado, muita gente diz que a poesia contemporânea é difícil e por isso não consegue sintonizar com o público de um certo gosto médio. Como você vê a relação entre poesia e público? Poesia não se vende e poesia não vende são sinônimos? Depois da Internet, da blogosfera, da disponibilidade de todo tipo de poeta e poesia na rede, das comunidades e fóruns virtuais, a poesia consegue chegar a mais pessoas?
Carlito - A regra do mercado é simples: livro bom é livro que vende. E o pior é que essa regra, que pretende tomar o lugar da reflexão crítica e da discussão política, coisas básicas para a poesia e para a filosofia, anda atingindo todo mundo. O que eu sei é que rentabilidade não é critério para se julgar a poesia (nem nada). Não me importa se um livro de poemas atingiu um milhão de pessoas, o que me importa é saber em que medida aquele livro de poemas me ajudou a ver o mundo como algo mais permeado de alternativas e possibilidades do que aquelas (pouquíssimas) que me são oferecidas pelo mundo globalizado: nasça, consuma carros e celulares, faça sucesso e morra. O mesmo vale para blogs e sites de poesia.
Gerson - Essa relação entre público e poesia, para nós do Palavra Expressa é relevante, no sentido de que o poeta problematiza a existência e busca desautomatizar a vida. Ser ouvido e lido, buscar um ponto que me ligue ao outro, essa conexão, essa empatia - sentir junto, é muito importante. Sei que soa messiânico, mas ...assim como uma poemúsica - uma bela canção feita por um dos nossos da mpb atinge as pessoas e aquilo se torna trilha de um momento da vida, que dá a dimensão existencial daquilo que se viveu...isso é possível, hoje, para a poesia e um público, como foi para Drummond ou Gullar ou Leminski?
Carlito - Eu acho que a relação entre poesia e leitor é o mais relevante. Quando passo a tratar o leitor como público, reduzindo-o a números, consumidores, estatísticas, eu já entrei no próprio processo de automatização que pretendia estar criticando. Lorca dizia que ler um poema num auditório para seis pessoas valia tanto quanto publicar um livro com uma tiragem de cinco mil exemplares. É desse modo enviesado e mais rico que eu acho que a poesia deve se relacionar com os "números", algo que fundiria a cabeça de qualquer gerente de vendas: dois e dois são cinco, seis igual a cinco mil. O importante para o poeta é não se recusar ao contato, ele deve publicar livros, fazer leituras públicas, criar blogs, postar suas leituras no youtube e no myspace. Alguns, como eu, até editam revistas de poesia que tentam multiplicar esse contato entre poeta e leitor. Mas que o sucesso de quem quer que seja não nos iluda.
Gerson - Na coleção de poesia que você coordena, Às de colete, depois da reunião dos poemas de Cacaso, Orides Fontela, Chico Alvim, Chacal, da surpresa da portuguesa Adília, quem vem? E dos novos?
Carlito - Minha alegria maior com essa coleção é a possibilidade de lançar novos autores. A próxima leva, agora em outubro, traz livros novos de Ricardo Domeneck, Walter Gam e Felipe Nepomuceno, três novíssimos que me encantam e fazem ficar otimista quanto aos desdobramentos da poesia futura. Além disso, temos também a poesia reunida de Cesare Pavese, grande poeta italiano que até agora só foi publicado no Brasil como romancista.
Carlito - Minha alegria maior com essa coleção é a possibilidade de lançar novos autores. A próxima leva, agora em outubro, traz livros novos de Ricardo Domeneck, Walter Gam e Felipe Nepomuceno, três novíssimos que me encantam e fazem ficar otimista quanto aos desdobramentos da poesia futura. Além disso, temos também a poesia reunida de Cesare Pavese, grande poeta italiano que até agora só foi publicado no Brasil como romancista.
Gerson - E você? Depois do Sublunar com a reunião dos seus livros anteriores, o que vem por aí? Como você sente que sua obra se desdobra?
Carlito - Já dizia o Paul Valéry que a função de um livro é surpreender seu autor. E eu creio um pouco nisso. Vou escrevendo, jogando fora, refazendo, sempre de acordo com meu "eu todo retorcido", como dizia o Drummond, com esse feixe de tensões que me compõe. Imagino que seja um livro mais cortado de fluxos sonoros e mentais do que estruturado em placas visuais, como vinha sendo meu trabalho poético até agora... Mas pode ser só impressão minha. Como disse, estou disposto a ser surpreendido.